Queimando etapas
Mais um passo é dado no campo da medicina regenerativa: pesquisadores criam neurônios humanos a partir da pele, sem a necessidade de usar células-tronco ou induzir o tecido à pluripotência. O biólogo Stevens Rehen comenta o feito em sua coluna de maio.
Por: Stevens Rehen Publicado em 27/05/2011 | Atualizado em 27/05/2011
Pesquisadores conseguem transformar células humanas da pele diretamente em neurônios. Apesar do sucesso, a técnica ainda precisa ser replicada e validada pela comunidade científica (imagem: jscreationzs/ FreeDigitalPhotos – montagem: Sofia Moutinho)
A estimativa atual é de que existam pelo menos 23 mil genes dentro do núcleo de cada célula de nosso corpo, mas, para converter uma dessas células num neurônio, são necessários somente quatro desses genes. Simples assim. É o que descreve o artigo da equipe de Marius Wernig, da Universidade de Stanford, publicado nesta semana na revista científica Nature.
Há quatro anos, no Japão, Shynia Yamanaka transformou fibroblastos da pele em células-tronco de pluripotência induzida (iPS, na sigla em inglês), equivalentes a células-tronco embrionárias. Como já discutido anteriormente nesta coluna, foi uma revolução.
A partir dessa técnica, hoje em dia qualquer laboratório do mundo com treinamento e equipamentos adequados é capaz de conceber uma fábrica de produção dos mais variados tipos celulares humanos a partir de uma pequena biópsia de pele.
O trabalho de Stanford é inspirado no esforço original do grupo do Japão, mas tem mérito para subverter positivamente o campo, como tentarei mostrar aqui.
Há pouco mais de um ano, a equipe liderada por Marius Wernig, conseguiu converter fibroblastos da pele de camundongos diretamente em neurônios. Como que por um atalho inesperado, sem a necessidade de passar pela etapa de pluripotência induzida.
Mas como são muitas as diferenças no controle de expressão gênica entre camundongos e seres humanos, converter pele de camundongo em neurônio de camundongo não é garantia para o sucesso da técnica em células humanas. Como diria Gerson, o ex-jogador e comentarista de futebol, “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”.
Usaram, nesse processo, um vírus como cavalo de Troia para carregar para o interior dessas células uma combinação de genes batizada de tratamento BAM (sigla composta pelas iniciais de cada um dos genes – Brn2, Ascl1 e Mytl1).
Como as células-tronco embrionárias são sabidamente capazes de se transformar em neurônios – dependendo apenas de um estímulo adequado –, se a técnica não funcionasse com essas células, provavelmente não funcionaria com nenhuma outra.
Três dias após a infecção, neurônios jovens começaram a surgir na placa de cultura. Após oito dias, essas células passaram a apresentar morfologia mais complexa e a produzir proteínas típicas de neurônios funcionais. Os neurônios formados conseguiam inclusive se comunicar entre si.
A princípio, o grupo testou o método em fibroblastos fetais, já que outros trabalhos científicos haviam demonstrado ser mais fácil (ou menos difícil) reprogramar essas células. Uma semana após a infecção com a combinação BAM, surgiram os primeiros neurônios. Apresentavam a morfologia típica de células do cérebro de seres humanos, mas eram muito imaturos.
Naquele momento, a conclusão dos cientistas era de que, diferentemente do que acontecera com as células de camundongos, três genes não seriam suficientes para criar cérebro humano a partir da pele. No máximo, obtinham-se precursores neuronais, mas não neurônios propriamente ditos.
Diante desses resultados, a equipe de Wernig resolveu testar outros 20 genes para incrementar o efeito do tratamento BAM. Descobriram, então, que NeuroD1, um fator de transcrição com grande importância para a formação de neurônios, quando combinado ao tratamento BAM, triplicava a eficácia da conversão pele-cérebro.
Após duas semanas, essa combinação, agora conhecida como BAMN, convertia fibroblastos em neurônios com morfologia típica e que produziam diversas proteínas do cérebro humano. Um mês depois, essas células se tornavam praticamente idênticas a neurônios funcionais.
Estaria o fenômeno de conversão em neurônios humanos restrito a fibroblastos fetais, muito imaturos e sabidamente mais fáceis de responder a esse tipo de manipulação genética?
Para obter a resposta, a equipe decidiu repetir o procedimento com fibroblastos mais maduros, obtidos do prepúcio de recém-nascidos circuncidados. Novamente conseguiram transformar as células da pele em neurônios funcionais. Para finalizar, repetiram o feito com fibroblastos de uma criança de 11 anos.
Enquanto 20% dos fibroblastos de camundongos eram convertidos em neurônios com a aplicação da técnica, o mesmo acontecia somente com 3% de seus corolários humanos. Além disso, a falta de demonstração da eficácia do método em fibroblastos realmente adultos (não de fetos, recém-nascidos ou uma criança), indicava que havia um obstáculo a ser superado.
Tão importante quanto, é confirmar se os neurônios gerados a partir da pele são mais “seguros” do que células embrionárias ou reprogramadas. Um ensaio experimental simples poderia evidenciar a possibilidade (ou não) de formação de teratomas por essas células.
A equipe californiana está, portanto, diante de mais uma provação. Se nenhum outro cientista conseguir transformar fibroblastos humanos em neurônios, o procedimento pouco irá contribuir para o desenvolvimento dessa área de pesquisa.
Independentemente disso, o trabalho é fascinante. A partir da combinação de quatro genes, em pouco mais de um mês, foi possível transformar fibroblastos humanos em neurônios funcionais.
O mais impressionante, na minha opinião, é constatar que apenas 0,02% do genoma humano é suficiente para promover essa conversão. Mal comparando, seria o equivalente a transformar uma bicicleta num carro de Fórmula 1 com uma chave de fenda e meia dúzia de parafusos.
De uma forma bastante simples, reduziu-se a necessidade de se criar iPS para gerar neurônios. A conversão direta pele-cérebro reduz custos, tempo e torna mais fácil a obtenção de tecido cerebral de pacientes específicos no laboratório.
Novas perspectivas para a medicina regenerativa acabam de surgir.
Stevens Rehen
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Há quatro anos, no Japão, Shynia Yamanaka transformou fibroblastos da pele em células-tronco de pluripotência induzida (iPS, na sigla em inglês), equivalentes a células-tronco embrionárias. Como já discutido anteriormente nesta coluna, foi uma revolução.
A partir dessa técnica, hoje em dia qualquer laboratório do mundo com treinamento e equipamentos adequados é capaz de conceber uma fábrica de produção dos mais variados tipos celulares humanos a partir de uma pequena biópsia de pele.
O trabalho de Stanford é inspirado no esforço original do grupo do Japão, mas tem mérito para subverter positivamente o campo, como tentarei mostrar aqui.
Primeiros testes
Dentre os diversos tipos celulares gerados a partir das iPS, neurônios estão entre os mais complexos. Até então, para se obter neurônios a partir da pele, era preciso primeiro reprogramar fibroblastos em iPS para, num segundo momento, transformar as iPS em neurônios. O processo todo demora em média três meses e exige gastos altíssimos com meio de cultura e outros reagentes.Há pouco mais de um ano, a equipe liderada por Marius Wernig, conseguiu converter fibroblastos da pele de camundongos diretamente em neurônios. Como que por um atalho inesperado, sem a necessidade de passar pela etapa de pluripotência induzida.
Mas como são muitas as diferenças no controle de expressão gênica entre camundongos e seres humanos, converter pele de camundongo em neurônio de camundongo não é garantia para o sucesso da técnica em células humanas. Como diria Gerson, o ex-jogador e comentarista de futebol, “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”.
Converter pele de camundongo em neurônio de camundongo não é garantia para o sucesso da técnica em células humanas
Nesse novo trabalho, os pesquisadores de Stanford primeiramente testaram se o mesmo coquetel de genes “neurogênicos” aplicado nas células de camundongo também transformaria células-tronco embrionárias humanas em neurônios.Usaram, nesse processo, um vírus como cavalo de Troia para carregar para o interior dessas células uma combinação de genes batizada de tratamento BAM (sigla composta pelas iniciais de cada um dos genes – Brn2, Ascl1 e Mytl1).
Como as células-tronco embrionárias são sabidamente capazes de se transformar em neurônios – dependendo apenas de um estímulo adequado –, se a técnica não funcionasse com essas células, provavelmente não funcionaria com nenhuma outra.
Três dias após a infecção, neurônios jovens começaram a surgir na placa de cultura. Após oito dias, essas células passaram a apresentar morfologia mais complexa e a produzir proteínas típicas de neurônios funcionais. Os neurônios formados conseguiam inclusive se comunicar entre si.
Prova dos nove
Mas a prova dos nove viria somente com células da pele de seres humanos. Será que a introdução de três genes específicos no interior de fibroblastos humanos os transformariam em neurônios?A princípio, o grupo testou o método em fibroblastos fetais, já que outros trabalhos científicos haviam demonstrado ser mais fácil (ou menos difícil) reprogramar essas células. Uma semana após a infecção com a combinação BAM, surgiram os primeiros neurônios. Apresentavam a morfologia típica de células do cérebro de seres humanos, mas eram muito imaturos.
Naquele momento, a conclusão dos cientistas era de que, diferentemente do que acontecera com as células de camundongos, três genes não seriam suficientes para criar cérebro humano a partir da pele. No máximo, obtinham-se precursores neuronais, mas não neurônios propriamente ditos.
Diante desses resultados, a equipe de Wernig resolveu testar outros 20 genes para incrementar o efeito do tratamento BAM. Descobriram, então, que NeuroD1, um fator de transcrição com grande importância para a formação de neurônios, quando combinado ao tratamento BAM, triplicava a eficácia da conversão pele-cérebro.
Após duas semanas, essa combinação, agora conhecida como BAMN, convertia fibroblastos em neurônios com morfologia típica e que produziam diversas proteínas do cérebro humano. Um mês depois, essas células se tornavam praticamente idênticas a neurônios funcionais.
Estaria o fenômeno de conversão em neurônios humanos restrito a fibroblastos fetais, muito imaturos e sabidamente mais fáceis de responder a esse tipo de manipulação genética?
Para obter a resposta, a equipe decidiu repetir o procedimento com fibroblastos mais maduros, obtidos do prepúcio de recém-nascidos circuncidados. Novamente conseguiram transformar as células da pele em neurônios funcionais. Para finalizar, repetiram o feito com fibroblastos de uma criança de 11 anos.
Enquanto 20% dos fibroblastos de camundongos eram convertidos em neurônios com a aplicação da técnica, o mesmo acontecia somente com 3% de seus corolários humanos. Além disso, a falta de demonstração da eficácia do método em fibroblastos realmente adultos (não de fetos, recém-nascidos ou uma criança), indicava que havia um obstáculo a ser superado.
É preciso replicar
Se não for possível produzir neurônios a partir da pele de jovens, adultos e principalmente idosos, pouco se aproveitará da técnica.Tão importante quanto, é confirmar se os neurônios gerados a partir da pele são mais “seguros” do que células embrionárias ou reprogramadas. Um ensaio experimental simples poderia evidenciar a possibilidade (ou não) de formação de teratomas por essas células.
Cabe aqui registrar que, após um ano, nenhum outro grupo de pesquisa conseguiu repetir o feito
Cabe aqui registrar que, após um ano, nenhum outro grupo de pesquisa conseguiu repetir o feito da conversão de fibroblastos de camundongos em neurônios.A equipe californiana está, portanto, diante de mais uma provação. Se nenhum outro cientista conseguir transformar fibroblastos humanos em neurônios, o procedimento pouco irá contribuir para o desenvolvimento dessa área de pesquisa.
Independentemente disso, o trabalho é fascinante. A partir da combinação de quatro genes, em pouco mais de um mês, foi possível transformar fibroblastos humanos em neurônios funcionais.
O mais impressionante, na minha opinião, é constatar que apenas 0,02% do genoma humano é suficiente para promover essa conversão. Mal comparando, seria o equivalente a transformar uma bicicleta num carro de Fórmula 1 com uma chave de fenda e meia dúzia de parafusos.
De uma forma bastante simples, reduziu-se a necessidade de se criar iPS para gerar neurônios. A conversão direta pele-cérebro reduz custos, tempo e torna mais fácil a obtenção de tecido cerebral de pacientes específicos no laboratório.
Novas perspectivas para a medicina regenerativa acabam de surgir.
Stevens Rehen
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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